Transparência não é sinônimo de exposição: publicidade em processos administrativos disciplinares (PAD) em tempos de clamor digital.

Por Ricardo Albuquerque*

Entre o dever de informar da Administração e, o direito de não ser pré-julgado do Servidor Público. Onde a prudência precisa imperar, sem perder a “ternura”.

Essa semana um episódio nos marcou quanto sociedade: uma família se preparava para sepultar seu filho, um recém-nascido prematuro de 27 semanas o qual tinham declarado seu óbito, quando, de repente, o neném começa a apresentar sinais vitais. O bebê é levado as pressas para a UTI neonatal, resiste por cerca de dois dias e, então, vem a descansar. 

A sucessão desses fatos — trágico, raro e altamente emotivo — acaba gerando um clamor social imediato, absolutamente justificável. Contudo, é a partir daí que podem ocorrer as piores decisões de comunicação pública.

A reação mais comum é a da sobre-compensação: váriasentrevistas, posts em redes sociais, promessas de punição exemplar, anúncios de afastamentos, vazamentos de nomese tudo o mais. Em grande parcela sob o manto da “transparência”. Mas é bom que lembremos, transparência no Estado de Direito deve conteúdo jurídico. Ela não deve ser medida por decibéis ou “clamor social”; mede-se por finalidade, proporcionalidade e respeito a garantias “do outro”.

É bem verdade que a Constituição Federal impõe à Administração Pública o princípio da publicidade, isso é inegociável. Só que tal princípio deve conviver com outros: honra, imagem, devido processo legal, contraditório, ampla defesa e, principalmente, o da presunção de inocência. A Lei de Acesso à Informação afirma que dados pessoais merecem proteção; a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) reforça a necessidade de tratar o mínimo necessário; já o Estatuto do Servidor público (aqui em nosso Estado é a Lei Complementar nº 39/1993) define rito, prazos e medidas cautelares. Ignorar tais “regras” pode acabar transformando a boa intenção de “dar uma satisfação” no mau resultado de “expor”.

O episódio triste ocorrido na maternidade ilustra o dilema. É absolutamente legítimo, e até devido, que o chefe do Executivo anuncie a instauração de apuração e, sendonecessário, o afastamento preventivo dos profissionais diretamente envolvidos, para garantir a instrução isenta. 

Vale deixar claro que, conforme determina o Estatuto do Servidor público do Estado do Acre, o afasto deverá ser com remuneração garantida e, sem caráter punitivo. 

Contudo, o que não pode ser considerado legítimo é a promessa de punição antes mesmo do PAD ser instaurado e a investigação iniciada. Fazer isso é sugerir culpa; é nomear e humanizar personagens, o que não trará qualquerbenefício público imediato, mas corre o risco trazer dano certo e irreparável à reputação de um servidor público que estava ali cumprindo sua função, muitas vezes em condições precárias e, cuja carreira é seu patrimônio, esseprotegido por lei.

Afinal de contas, ninguém deveria ser julgado “no feed” das redes sociais. 

A publicidade excessiva pode acabar contaminando testemunhas, destruindo a serenidade que a comissão processante deve ter e, por fim, incentivar versões performáticas dos fatos.

Embora a anulação de um PAD costume exigir prova de prejuízo concreto, a exposição indevida, ou ainda exacerbada, pode acabar gerando dano moral e aresponsabilização do Estado.

Em verdade, a comunicação pública nesses casos de PADsdeveria, para o bem do Direito, informar o que foi decidido institucionalmente — instauração do processo, ritos, prazos, garantias, medidas cautelares se couberem e, pontos de checagem. Ou seja, deve transparecer “o que será feito” e “quando”. Protegendo ainda nomes, imagens e dados pessoais, de servidores e pacientes, enquanto a instrução ocorre e, por fim, publicizar relatório final e decisão, com as responsabilizações cabíveis, quando houver, e com a devida fundamentação.

Para que isso ocorra, deve haver coordenação entre quem decide, quem investiga e quem comunica. Governantes e secretários não podem falar como influencers; precisam falar como autoridades, e carregar a prudência que o cargo exige. A assessoria jurídica deve ser ouvida. A comissão doPAD deve orientar sobre riscos de contaminação da prova. E, por fim, a assessoria de comunicação precisa dominar um repertório de linguagem neutra: substituir adjetivos por fatos, presunções por condicionalidades, promessas por procedimentos.

No fatídico episódio do bebê José Pedro, o “texto ideal” para a primeira comunicação caberia em poucos parágrafos: abordando o ocorrido; informando ainstauração imediata de apuração, com rito e prazos; eventual afastamento preventivo e sua motivação, esclarecido como medida técnica, para a preservação da instrução; compromisso de atualização ao final das fases e; explicitação de que dados pessoais serão protegidos conforme determina a legislação. Nada de nomes, fotos ou,ainda, promessas de punição. Quem errou, e se errou, responderá ao final — não no tribunal da internet.

Por vezes utilizaram da afirmação “Mas a sociedade quer respostas, o chefe do Executivo tem o dever de dá-las”. 

Tudo bem, a sociedade quer e merece! Porém respostas verdadeiras, e não spoilers ou uma espetacularização ainda maior da situação. A ética da responsabilidade manda resistir ao impulso de saciar a curiosidade, e sede, coletiva com identidades e adjetivos. E manda, sobretudo, proteger o próprio interesse público: quando se preserva a instrução, aumenta-se a chance de responsabilização legítima ao final, com decisões sustentáveis no tempo e perante os tribunais.

A boa notícia é que esse padrão é replicável. Ele não abafa a transparência — qualifica-a. Ele não protege “corporativismos” — protege o devido processo. Ele não contraria a dor das famílias — impede que a dor seja instrumentalizada. E, acima de tudo, ele nos lembra que transparência é ponte entre o cidadão e o Estado, não holofote sobre indivíduos colocados, às vezes erroneamente, no centro de um espetáculo.

Por fim, a pergunta que deveria guiar toda fala oficial é simples: o que eu vou dizer aumenta a qualidade da apuração ou só alimenta a ansiedade do noticiário? Se for a primeira opção, diga. Se for a segunda, cale e trabalhe. O Estado de Direito agradece.

*Ricardo Albuquerque é advogado (OAB/AC 5958), com atuação em Direito Civil, Criminal, Eleitoral e Administrativo, e é pós-graduando em Direito Eleitoral e Previdenciário.

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Tags: Transparência; Processo Administrativo Disciplinar; Publicidade; Comunicação Pública; LAI; LGPD; Estatuto do Servidor; Acre; Rio Branco; Saúde Pública

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