RESEX Chico Mendes e o atraso que nos persegue

Por Francisco Afonso Nepomuceno*

O episódio da operação desencadeada por órgãos do Governo Federal na Reserva Extrativista Chico Mendes, tendo à frente o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO), fez recrudescer o conservadorismo atávico constitutivo do pensamento da elite acreana e da maioria do povo, este, alimentado por grande parte da mídia hegemônica.

Após o assassinato de Chico Mendes, em 1988, e o impacto no noticiário mundial, a elite conservadora do Acre passou a adotar uma postura mais comedida para disfarçar sua cumplicidade, se não com o fato em si, ao menos com a atmosfera que o gerou.

Com a vitória do PT em 1998 e o slogan “Governo da Floresta” nos dois primeiros mandatos liderados por Jorge Viana, a cumplicidade mudou de lado e o silêncio obsequioso parecia servir de assepsia aos que tinham manchado suas biografias validando fatos passados que os envergonharam, numa postura que fazia lembrar o discurso da servidão voluntária do qual falava Étiene De La Boéti.

A crise do sistema capitalista de 2008 obrigou os donos do capital a recorrerem ao seu filho bastardo para a acumulação não cessar. Refiro-me ao fascismo, tão bem empregado no século XX para combater o comunismo em franca ascensão e agora, com a descrença do povo na democracia liberal, para garantir a exploração da classe trabalhadora cada vez mais empobrecida e os ganhos da burguesia.

No Acre, dois acontecimentos foram marcantes para ilustrar o conservadorismo latente: o primeiro, ficou famosa a passagem de Jair Bolsonaro por Rio Branco na eleição de 2018 e sua performance bizarra no quartel da PM com um instrumento, imitando alguém com uma metralhadora e dizendo; “Vamos metralhar os petistas do Acre”, com direito a gargalhadas dos presentes. O segundo, a acachapante vitória do Capitão: grosseiro, chulo, homofóbico, machista, racista e fascista, tornando o Acre, em 2018, o Estado mais bolsonarista do Brasil. Vale dizer: eu nunca imaginei ter convivido, nos 20 anos em que estive no governo, com tantos simpatizantes do fascismo.

A operação “Suçuarana” induziu a manifestação sem disfarce, de vários agentes do alto a baixo da pirâmide social. O preconceito contra a figura lendária de Chico Mendes e da ministra Marina Silva ecoou numa polifonia de vozes crédulas, em pleno século XXI, na máxima de que o progresso e o desenvolvimento na Amazônia atendem pelo nome de desmatamento.

O economista Celso Furtado já alertava em 1973, no livro “O mito do desenvolvimento econômico”, para o engodo do conceito de desenvolvimento. Dizia ele, o subdesenvolvimento não é uma etapa do desenvolvimento, ele é constitutivo deste.  Assim como o Brasil, nos marcos do capitalismo, nunca será os Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha ou França, o Acre nunca será assemelhado aos estados do Sul e do Sudeste.

Os países centrais da economia capitalista, precisam do Brasil para ser o que são, assim como São Paulo precisa de estados como o Acre para ser o que é. Ademais, o desenvolvimento deles não é por conta do desmatamento e sim de indústria, educação, ciência e tecnologia.

Com o diagnóstico dos cientistas de que a Amazônia é determinante para o equilíbrio climático do planeta, as Unidades de Conservação passaram a ter cada vez mais valor estratégico. São múltiplas as crises que presenciamos na contemporaneidade. Crise econômica, exclusão social, crise política (descrédito na democracia liberal, fascismo), mas nada se compara à crise ambiental por sua dimensão histórica capaz de afetar a vida no planeta e comprometer as gerações futuras.

O Brasil é o 7º país que mais emite CO2 na atmosfera, ficando atrás de (China, EUA, Índia, Rússia, Japão e União Europeia) todos eles têm na indústria a razão motivadora do fenômeno, no caso brasileiro o problema é o desmatamento seguido de queimada, principalmente da Amazônia e o objetivo dessa irracionalidade é colocar capim no lugar da floresta para criar gado.

O Pará possui o segundo maior rebanho bovino do país; em pesquisa recente publicada no portal UOL, envolvendo os 5.570 municípios brasileiros, dos 20 municípios com a pior qualidade de vida, 12 são paraenses. Com destaque para São Félix do Xingu, que em 2014 ostentou o troféu de maior rebanho bovino do país e ocupa o 9º lugar em pior qualidade de vida. Esse é o futuro que nos aguarda, com uma elite econômica que ainda acha que a Amazônia é o “inferno verde” e que a imagem do paraíso seria um pasto infinito ou a monocultura da soja.

O agronegócio dinamiza a economia quando toda a cadeia produtiva, da semente ao produto no prato, passa pela indústria, serviço e comércio. No caso do Acre o que vigora é o modelo mais atrasado, a pecuária extensiva sem indústria de processamento. É a tempestade perfeita para o atraso: agressão ao meio ambiente (desmatamento), concentração fundiária (latifúndio), concentração de renda (não gera emprego) e se exportar, por conta da Lei Kandir, não paga imposto, logo, não cumpre sua função social.

O agronegócio deitou raízes no Acre inclusive, na RESEX Chico Mendes. A cultura do agro, sua estética e seus signos estão presentes na linguagem, no modo de vida, nos gostos e criou uma subjetividade outra que não aquela que embalou o sonho e a luta de Chico Mendes. Não é por outro motivo que o Raimundão é o principal alvo dos que defendem a criação de gado na Reserva, ele é o símbolo maior dos que conceberam e conquistaram aquele território com o propósito de preservar a floresta e nela viver com dignidade, sem a pretensão de ficar rico.

Ainda há muitos outros moradores da Reserva portadores dessa mesma concepção, mas a grande maioria já naturalizou os valores do agro com destaque para a nova geração, encantada com a música sertaneja, com a indumentária, com a feira agropecuária, rodeios, cavalgadas e ser chamados de cowboy e não de seringueiros. Esses fatores são sedutores para despertar o elã de ser fazendeiro, mesmo em miniatura, flertando com o perigo de estar transgredindo a lei.

A criação da RESEX Chico Mendes, foi um sonoro não a ideia da prática da pecuária em plena Amazônia. Um não ao modo de vida imposto pelos fazendeiros que viam a floresta como um empecilho para a implementação da estrutura de seus negócios e os seringueiros como um obstáculo político a ser eliminado através da expulsão ou mesmo fisicamente como fizeram com Chico Mendes. Dito de outro modo, não há Reserva Extrativista sem Floresta e sem gente que queira viver em equilíbrio com ela. Quando não há indignação na própria Reserva por parte dos moradores, com a injustiça que estão fazendo com o Raimundão e com a ministra Marina, capaz de enunciar um contraponto de quem, assim procedendo, estará do lado certo da história, passa a nítida impressão de que a derrota é iminente, infelizmente.

Existir mobilização em favor da atividade pecuária na Reserva é um paradoxo inimaginável para quem lutou, suou e chorou para conquistá-la. O imobilismo e o silêncio dizem muito da atmosfera despolitizada que ganha corpo na comunidade, o espírito gregário tem sido substituído pelo individualismo e a solidariedade tem dado lugar à competitividade, dois cânones da ideologia neoliberal.

Essas mudanças vão se naturalizando e os agentes internalizam sem perceber; suas manifestações ocorrem nos gestos, na indiferença com o companheiro, na linguagem. Grande parte dos moradores da reserva sonha em ser empreendedor e vários já se autodefinem como agroextrativistas com indisfarçável orgulho. Essas palavras nunca fizeram parte do vocabulário do Chico Mendes, nesses termos a ideia de “Um outro mundo é possível” é impossível.

A Marina Silva já fez muito pelo Acre, como militante estudantil, no movimento sindical, como professora e na política institucional: como vereadora, deputada estadual, senadora e como ministra do Meio Ambiente. Ouso dizer, que essa ação através da operação “Suçarana”, mesmo com algum deslize político na condução, representa uma das mais agudas intervenções que ela fez em favor do Acre. Por um motivo simples, sem floresta, não haverá mais Acre! Será outra coisa: com rios temporários, muita poeira, pouca chuva, um lugar de gente muito mais pobre, triste e mal-humorada pois sem perspectiva.

Parafraseando o Zeca Baleiro: ficará tudo da cor de estanho, sem vida aparente.  Em seu último livro “O Decênio Decisivo”, Luiz Marques faz uma citação indutora para uma boa reflexão: “Destruir uma floresta tropical para obter ganho econômico é como queimar uma pintura do Renascimento para cozinhar uma refeição”.

*Francisco Afonso Nepomuceno é professor da UFAC na área de História. Cursa doutorado na UFSC no Programa Interdisciplinar e é Dirigente do PT/Acre.

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