Há 11 anos, quando eu trabalhava no jornal Página 20, fiz uma entrevista com o empresário Duarte José do Couto Neto. Foi uma das melhores conversas que eu tive com uma pessoa sagaz, inteligente e antenado com as coisas do mundo.
Ele gostava de ser chamado de Duda.
Hoje, depois de mais cinco meses lutando pela vida, ele fez a passagem.
Morreu em São Paulo, em razão das sequelas da Covid-19.
Tinha 71 anos.
Duda deixou esposa, a senhora Graça Couto, dois filhos – Tetê e Chiquinho e 5 netos.
Deixa também um legado de conquistas que acumulou no decorrer da vida.
“Perdi o meu melhor amigo”, disse, chorando, o seu filho Francisco Couto, o Chiquinho.
Leia a entrevista e conheça a história de um paulista de alma acreana. Uma pessoa que preferiu preservar floresta, em vez de “plantar” boi.
Duda Couto, um paulista que preferiu a floresta à Pecuária
Escrito por Leonildo Rosas
Empresário acredita na recuperação do extrativismo e diz que, onde entra o boi, sai o homem
Duarte José do Couto Neto, 61, é um paulista diferente de tantos outros que vieram para o Acre no início da década de 1970 atraídos pelas terras férteis e baratas da Região Amazônica.
Com os recursos herdados da venda das propriedades de sua família, Duda, como gosta de ser chamado, largou o curso de Medicina no quarto período e se embrenhou nas florestas acreanas cheio de sonhos inerentes à juventude.
É um paulista diferente porque não apostou na pecuária e no desmatamento para conseguir acumular riquezas. Sua aposta foi no longo prazo. Ele acreditou desde o começo na ideia de que a floresta em pé é mais rentável e agride menos o meio ambiente.
Antes de vir para o Acre, porém, Duda seguiu o exemplo do avô português Duarte José do Couto, que leu bastante sobre a história do Brasil.
Foi baseado na leitura da conquista do Acre que esse paulista desembarcou em solo acreano antes de completar os 20 anos. Aqui, casou com a acreana de Tarauacá Francisca das Graças Prado Couto teve três filhos e tem o orgulho de se declarar acreano.
Duda é proprietário de mais de 300 mil hectares que formam o Complexo de Seringal Canadá. Afirma ter título definitivo das áreas datado de 1891, tudo original. com selos da época.
“Só esses selos valem fortuna”, declara.
No dia em que recebeu o jornalista Leonildo Rosas para conceder a entrevista, Duda refletia sobre como enterraria os restos mortais da mãe, Teresa Capistrano do Couto, que estava na sala da sua casa.
Os restos mortais de dona Teresa foram trazidos do Rio de Janeiro, onde estavam enterrados desde 1980. “Trouxe a minha mãezinha para ficar próxima do meu filho, da minha irmã e de outros parentes da minha esposa.”
Assim é Duarte José do Couto Neto: um homem que ainda acredita no potencial da borracha, da floresta, e é ligado extremamente às questões familiares. Leia a entrevista.
O que trouxe o senhor para o Acre tão jovem?
Cheguei ao Acre no início dos anos de 1970. Havia largado o curso de Medicina e completara vinte anos de idade aqui. Hoje, sou formado em Economia. Vim movido pelo entusiasmo de trabalhar na Amazônia. Uma coisa que me motivou foi a história do Acre. Adotei o mesmo comportamento do meu avô quando veio de Portugal para o Brasil. Ele conhecia muito a nossa história, apesar de ser uma pessoa de pouca cultura.
Por que a história do Acre motivou o senhor?
Eu li muito sobre a história do Acre, que já foi o maior contribuinte da União no tempo áureo da borracha. É fruto de um povo determinado e valente, que veio enfrentar dificuldades. Era comum nos seringais encontrar cabeças espetadas de pessoas mortas por índios. Eram índios antropófagos. Você sabia disso?
O senhor tinha dinheiro para investir?
Essas histórias do Acre me motivaram. Cheguei jovem e a minha família me apoiou. Herdei algumas propriedades em São Paulo e as vendi, em Pirajuí. Nós tínhamos terra também em Presidente Alves e em Barra do Garça, no Mato Grosso. E no norte do Paraná. O que me coube eu trouxe para o Acre.
Fale um pouco da sua história aqui
Aqui me casei em 1975. A minha esposa é de Tarauacá, com quem tive três filhos. Eu me entendo como acreano. Cheguei com vinte anos e estou com sessenta e um. Dois terços da minha vida foram no Estado do Acre. Já peguei três malárias e já me diverti.
O senhor veio quando as fronteiras se abriram para a pecuária. Por que não investiu nela?
Vim no boom da pecuária, mas nunca investi nela. A prova é fácil de encontrar. Basta verificar que nunca entrei com um pedido ou projeto de desmatamento no Ibama ou no Imac. Aprendi com meu pai que, onde entra o boi, sai o homem. Essa é uma realidade.
Mas a pecuária produz uma carne boa…
Isso é verdade. O problema é que homem desempregado não consome a carne que a área desmatada produziu. Você não pode mudar aquilo que a natureza determina. Aprendi a mexer com borracha O meu sogro foi um grande seringalista em Tarauacá e me ensinou muito.
Como foi a sua relação com a borracha?
Considero excelente. Cheguei a ter até mil quatrocentos e setenta e três seringueiros. Talvez um pouco mais. Enquanto pude resistir na borracha, resisti. Com a queda do preço, os seringais se acabaram e a maioria dos seringueiros pode ser vista na periferia das cidades.
Qual a impressão que o senhor tem do seringueiro?
O que posso dizer do seringueiro é que você chega em qualquer colocação, não precisa ir de terno de gravata. Vá com uma camisa rasgada, uma calça rasgada, e não se identifique. Tenho a certeza de que você comerá a melhor galinha do terreiro e dormirá na melhor rede. É um povo puro, que aprendi a adorar.
Mas o senhor nunca teve conflito com os seringueiros?
Nunca tive conflito com seringueiros. Pode ir ao sindicato e ao Ministério do Trabalho para comprovar que nunca tive problema com ninguém. Havia conflito quando o cidadão queria passar por cima do direito de quem nascera no seringal e tem os seus parentes enterrados lá.
O senhor nunca teve problema mesmo?
Nunca passou pela cabeça atropelar alguém. Os seringueiros que eu soube preservar foram os mesmos que educaram os meus filhos. Foi o suor deles que permitiu aos meus filhos estudar, viajar e ter uma condição de vida melhor.
O senhor ainda acredita no potencial do extrativismo?
Acredito. Se houvesse sensibilidade e uma boa disposição dentro de um projeto racional para voltar a extração da
seringa, não tenho dúvida de que a gente desincharia as cidades acreanas com pouca despesa para o Estado. Seria um custo bem menor do que as celas das penitenciárias, os esgotos da periferia.
Mas o senhor acredita mesmo?
Claro! Tenho plena convicção de que é possível reativar. Veja o preço da borracha. Cheguei a apresentar projeto para a borracha. Não foi no Governo da Floresta. Quando eles assumiram, já não existia mais.
Esse projeto foi entregue a quem?
Eu levei um projeto ao professor Geraldo Gurgel de Mesquita. Não fui atendido. Entreguei nas mãos do então governador Nabor Júnior. Foi numa época em que se mandava plantar abacaxi em vez de seringueira.
O senhor diz que é possível, mas quanto está o quilo da borracha?
Hoje, com o preço da borracha, é viável. O preço no mercado interno, em São Paulo, gira em torno de sete a oito reais o quilo.
Além de seringais, o senhor entrou na política…
Houve um tempo em que me senti intimidado a partir da retificação da ordem nacional, influenciado pelo doutor
Enéas Carneiro. Na época, quando assumimos a executiva nacional do PRONA, havia uma determinação de que nunca sairíamos candidato.
Mas o senhor saiu…
Sim. De última hora, o doutor Enéas precisava de gente de extrema confiança para ele usar o tempo de televisão. Ele me pediu para registrar a minha candidatura ao governo. Mas há um hiato muito grande entre ser candidato e estar na condição de candidato. Eu estive candidato.
Mas antes de concorrer ao governo, em 1998, o senhor tentou ser deputado federal…
Fui candidato a deputado federal em 1990. Tenho orgulho daquela jornada. Fomos engolidos pelo PL do Rubem
Branquinho, que tinha oitenta por cento da intenção de votos. Nós, do PRN, perdemos na convenção para ele. Registrei a minha candidatura e fui sozinho contra a turma que apoiava o Branquinho. Sacrifiquei a minha candidatura para retirar o Acre das mãos dos aventureiros.
Como retirar das mãos de aventureiros?
Eu não tinha desavença com Rubem Branquinho. Apenas a mulher dele dizia que as acreanas eram mulheres de pouca qualidade. A minha esposa e a minha filha são acreanas.
Nesses anos todos no Acre, qual foi a sua grande perda?
A minha grande perda na vida eu não desejo nem para inimigo. Perdi o meu filho Duarte José do Couto Júnior. Ele
formou-se em Direito na Universidade Federal do Acre, foi um brilhante aluno. Foi fazer direito agrário em Cuiabá. Ele terminou o curso e, uma semana depois, veio embalsamado. Foi assassinado.
O senhor já chegou a se arrepender de ter vindo para o Acre?
Faria tudo de novo. A melhor coisa que fiz na vida foi conhecer o Acre, pela família que constitui, pela mãe dos
meus filhos, com quem sou casado há trinta e seis anos, pelos meus filhos e pelo povo acreano. Nunca tive problema com nenhuma pessoa humilde que tenha trabalhado ou lutado ao meu lado.
O senhor tem uma vasta propriedade de floresta. Há algum projeto para explorá-la?
Enfim, as coisas começam a acontecer. Sou de um partido diferente do senador Jorge Viana. Mas o fato é que precisou um jovem engenheiro florestal mostrar para o país e para o povo a verdadeira aptidão do Acre. Eu fiz uma parceria com maior madeireira certificada do mundo, que é a Precious Woods.
Qual é o prazo desse contrato?
Será um contrato de cinquenta anos. Não é para mim. Tenho sessenta e um anos. Já tirei onze nódulos do pulmão. Mas tenho convicção de que aquelas dezenas de pessoas que abandonaram os seringais serão reaproveitadas.
Como está o processo?
Já assinamos contrato. Mas, em razão da taxa cambial, todos os exportadores deram uma freada. A Precious Woods desativou a unidade do Pará para instalar no Acre. O maquinário está todo em Itacoatiara, no Amazonas.
E qual é valor do contrato?
Não tem segredo. São dez euros por metro cúbico de madeira retirada.
Há como comparar o preço do hectare da floresta com o da pecuária?
Não se pode comparar o valor de um hectare de floresta com um hectare de pasto. Um levantamento feito pela Precious Woods apontou que o hectare de floresta que mais deu chegou a oitenta e sete metros cúbico de madeira aproveitável. O que deu menos chegou a trinta e dois. Temos três ciclos, se não houvesse regeneração da madeira.
Onde ficam as suas propriedades?
A nossa área fica entre os rios Purus e Envira, além de uma parte na BR-364.
O senhor tem documentação?
A nossa área é toda certificada. Todas as propriedades que adquirimos no Acre, antes de fecharmos negócio, havia a preocupação em cuidar dos documentos. Só fechava negócio se a documentação fosse sadia e justa. Tudo passou pelo crivo do Incra.
Quanto foi certificado?
Até hoje foram certificados duzentos e dezoito mil hectares. Faltam ainda cento e poucos para certificar.
E qual a origem de tanta terra?
A maioria das nossas propriedades foi do tio da minha esposa, doutor Eraldo Carneiro França. É nossa há mais de
trinta anos. Durante cem anos foi só de uma família. Temos toda a cadeia dominial. Outras propriedades minha tiveram apenas dois proprietários.
Mas o senhor conseguiu tanta terra sem grilar?
Eu deveria nem responder essa pergunta. Basta verificar o comportamento dos seringueiros que moraram em nossas terras. É só ir ver. Pergunte a quem trabalhou com a gente. Nunca neguei a minha origem. Tenho prazer em falar sobre ela.
O senhor disse que os restos mortais estão na sala da sua
casa. Por que isso?
Minha irmã, a única que tinha, faleceu no ano passado e a trouxe para cá. Ela morava na Itália e em Salvador. Não
tinha filho. O meu filho mais velho está enterrado com a minha irmã. No mesmo local estão o meu sogro e a minha
sogra. Trouxe a minha mãe para ficar junto com a minha irmã e com o meu filho.
A pergunta para finalizar: o senhor já recebeu título de cidadão acreano?
Não. Não precisa disso. Tenho que ter o título das pessoas que me ajudaram a criar meus filhos derramando suor,
sendo perseguidas por pico-de-jaca no mato, muitas delas enterradas nos lugares onde nasceram. Quero o título do Duda, do “seu” Duda e do amigo Duda. Esse título eu tenho e ninguém me toma.