HomePapo de LinguistaA Bíblia e as metáforas do cotidiano

A Bíblia e as metáforas do cotidiano

Por Dr. Francisco O. D. Veloso*

Uma das perguntas mais corriqueiras que me dirigem na vida social é:  — O que você faz da vida? ou — Com o que você trabalha?

A resposta, quase invariável é: — Sou linguista. Essa é a minha profissão. O que geralmente recebo de volta é um olhar vazio, uma pausa, e geralmente vem a exclamação com ar de pergunta: — Então você sabe muitas línguas! A que respondo: — Não exatamente. 

Não sei quantas línguas falo, porque é uma pergunta difícil: — Falo bem? Mais ou menos? Quase nada? Falo bem algumas, consigo me comunicar em outras, e sei sobre a estrutura de outras línguas. 

A partir daí posso explicar que linguística não é sobre falar muitas línguas. É sobre ‘saber sobre línguas’, ou talvez uma língua específica. A quantidade não é relevante para tornar alguém um linguista profissional. A formação acadêmica, sim. Mas essa é uma outra história que retomaremos em outro momento.

Minha intenção, hoje, é começar a dividir um pouco do que é linguística, o que faz o linguista, ou explicar aquela piada: onde nascem; como se reproduzem; o que comem.

A linguística é uma ciência muito nova, das mais novas de todas as ciências modernas. Só começou a ser tratada como ciência a partir da década de 1920 e de lá para cá cresceu muito, contribuindo para muitas coisas do dia a dia. 

Se o seu assistente de voz no smartphone consegue obedecer aos seus comandos, se você falou com um assistente eletrônico em um desses atendimentos com muitas opções, se você estava digitando uma mensagem e lá no seu aplicativo ficaram aparecendo três opções do que escrever em seguida, foi graças à linguística como ciência. 

A preocupação com a língua, entretanto, não é algo novo. Isso porque a língua é o que de fato nos separa de todos os outros seres vivos. Só nós humanos temos a capacidade de produzir esses sons que, juntos, decidimos que significaria alguma coisa – sim, é um contrato social. Outro assunto para depois. 

Curiosos e criativos que somos, um dia criamos a escrita, e isso mudou a forma como tratamos o conhecimento, pois criamos uma forma de registrar e deixar para a posteridade histórias, conhecimentos e contratos que antes só circulavam na oralidade. 

A Bíblia, por exemplo, além de um livro sagrado para muitasreligiões, é também um documento histórico que só chegou até nós por causa da invenção da escrita e lá encontramos muitas reflexões sobre a linguagem, principalmente sobre seu uso, que é também uma das preocupações da linguística.

Mateus 12:34, por exemplo, diz:

Raça de víboras, como podem vocês, que são maus, dizer coisas boas? Pois a boca fala do que está cheio o coração.

Este versículo tem como base uma metáfora, que estudamos na escola como se fosse apenas uma da figura de linguagem. Toma-se um aspecto particular de alguma coisa e transfere-o para outra. Víbora é um animal peçonhento, ou seja, tem veneno, que é mortal, é algo negativo.

Da víbora sai veneno e, portanto, do homem interpretado como uma víbora sai coisas negativas. A víbora está cheia de veneno (não é bem assim), e o homem interpretado como uma víbora tem o coração cheio de veneno. O coração do homem está cheio de sangue, só isso. A ideia de veneno no coração é, portanto, uma metáfora. O veneno da víbora é expelido pela boca, e também o do homem, neste caso.

Mas as metáforas não estão somente na Bíblia e são mais do que figuras de linguagem listadas em livros didáticos e gramáticas. Elas são produtos cognitivos e culturais que fazem parte do nosso cotidiano e de como concebemos o mundo.

A linguística moderna estuda as metáforas para estudar a forma como as pessoas pensam, como veem o mundo, já que não podemos ler os pensamentos de ninguém. O que falamos e como falamos revela um pouco daquilo que somos, a nossa subjetividade, nossa visão de mundo, inclusive preconceitos. Ninguém entra em um ambiente dizendo: bom dia, eu sou racista. O racismo se revela nas sutilezas (ou falta de) das escolhas de um individuo. Frases como ‘dia de branco’ ou ‘coisa está preta’ são metáforas racistas que às vezes ocorrem inclusive no ambiente profissional, que tem sido muito estudado no campo da linguística. Áreas de bens e serviços, saúde e migração são exemplos sobre os quais falarei em outra oportunidade.

No âmbito profissional, tenho tido surpresas no ambiente de trabalho na UFAC.

Percebi o uso frequente, por parte de alguns poucos professores, do uso de uma metáfora que jamais tinha ouvido (ou lido) em português, e nunca ouvi (ou li) em inglês ou italiano – as três línguas que já utilizei em ambiente profissional em mais de 30 anos de minha vida profissional. Trata-se de referir-se a um processo administrativo como “natimorto” para argumentar que ele não procede.

Como exemplo concreto, para não ficarmos nas conjecturas, irei citar um trecho de um documento público registrado na UFAC sob o Processo 23107.008441.2018-20 Projeto Pedagógico Curricular de Letras Inglês:

Natimorto é o termo utilizado para referir-se a um feto que morre durante a gravidez ou ao nascer. Utilizar este termo como uma metáfora para referir-se a processos administrativos ignora o fato de que existe muita vida em torno de uma gravidez, não é apenas o processo biológico em si. Existem planos, expectativas, escolha de um nome, preparação na casa, alegria quando chegam os chutes. Tudo isso é arrancado de uma vez só quando o feto morre ainda no ventre ou durante o parto. Devemos notar que ninguém utiliza o termo ‘feto’, nem mesmo para animais. Para nós, humanos, perguntamos se já sabe o sexo do bebê ou da criança. Isso é parte de um processo de humanização do feto que ocorre através da linguagem.

A dor da perda de uma criança (o natimorto) pode ser somente da mãe, mas em um contexto social ideal não exclusivamente, pois o processo envolve a família, que é deixada com um vácuo de alguém que poderia ter sido. Poderia ter sido o irmão mais velho, o mais novo, que poderia ser bem-sucedido, ou talvez o garoto-problema que de qualquer forma todos amariam e cuidariam. Mas que, infelizmente, por alguma(s) causa(s), morreu antes de ser.

A Pedra de Rosetta (disposta no Museu Britânico, Londres) data aproximadamente do Ano 196 AC. Contendo um decreto em três sistemas de escrita diferentes — hieroglífica egípcia antiga, em demótico (variante da escrita do egípcio tardio) e em grego antigopermitiu que se decifrasse o sistema de escrita hieroglífica egípcia. Para saber mais:https://blog.britishmuseum.org/everything-you-ever-wanted-to-know-about-the-rosetta-stone/

Voltemos à metáfora. Um servidor público decide selecionar um único aspecto de uma experiência humana traumática para caracterizar um processo administrativo. Para desqualificá-lo, argumenta-se que é ‘um processo natimorto’.

Considerando que este processo circulou por vários setores da UFAC, aliado ao seu uso em diversas reuniões em que estava presente, depreende-se que essa metáfora foi normalizada. Sugere, ainda, falta de vocabulário e articulação argumentativa – a argumentação/retórica é uma arte verbal.

O uso desta metáfora, de um processo natimorto, parece ser um reflexo da cultura das mídias sociais onde ganha a discussão quem gritar, quem chocar, quem ‘lacrar’. Nos contextos em que presenciei seu uso, parece ser utilizado para retirar do outro a possibilidade de questionar atos administrativos simplesmente através da ‘lacração’.

Sobre isso, cabe uma pergunta ao MPF ou para os especialistas em Direito responder: desde quando um servidor público precisa de portaria para apontar erros administrativos?

A metáfora revela, por parte de quem usa, insensibilidade, diria até desprezo pela vida, pelas pessoas que passam por essa experiência traumática. Tudo isso pago com dinheiro público.

Como dito acima, a metáfora revela sobre o que pensamos, a nossa forma de ver o mundo. Ou, como diz o apóstolo Mateus, “a boca fala do que está cheio o coração”.

As metáforas, às vezes, dizem mais sobre quem as usa do que sobre o que se fala.

*Francisco O. D. Veloso é professor no Centro de Educação, Letras e Artes (CELA-UFAC). Possui Doutorado em Linguística Aplicada/Inglês pela UFSC. Foi professor na Universidade Politécnica de Hong Kong (Hong Kong SAR), Professor Visitante na Universidade de Modena e Reggio Emília (Modena, Itália) e professor na Universidade de Bologna (Bologna, Itália).

Oba.: A foto em destaque é na Catedral de São Pedro, Bolonha, Itália.

LEAVE A REPLY

Please enter your comment!
Please enter your name here

vale a leitura