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Página infeliz – A ditadura se instalou no Acre dia 8 de maio de 1964 e obrigou o primeiro governador eleito a renúncia; o Portal do Rosas conta os bastidores


“Assumo no dia de hoje o Poder Executivo de minha terra, lançando o meu pensamento e o meu coração para os anos idos e vividos como, se criança, pudesse antever etapas evolutivas por que o Acre teria que passar e está passando, no encalço do seu verdadeiro destino”, José Augusto de Araújo

Eram exatamente 14 horas quando o presidente da Assembleia Legislativa, José Ackel Fares, deu início aos trabalhos. Estavam presentes 15 deputados para a primeira sessão extraordinária de 1964. Pelo semblante dos parlamentares, estava claro que aquele 8 de maio não seria um dia comum para a história do Acre.

Naquele dia, os deputados começariam a escrever o último capítulo de uma trama que vinha sendo construída há meses nos bastidores da política, que ganhou força quando os militares derrubaram o presidente João Goulart e assumiram o comando do Brasil, no dia 1º de abril.

Os deputados se reuniram extraordinariamente para votar a Emenda Constitucional número 3.

Lida pelo deputado militar Geraldo Reis Fleming, a Emenda Constitucional determinava que, em caso de vacância definitiva do cargo de governador, declarada pela Assembleia Legislativa,  a eleição de um novo governante seria feita pelos deputados dentro de dois dias, a contar da vacância.

A proposta foi posta em discussão. Todos calaram. Ninguém quis fazer o uso da palavra, como se estivessem constrangidos pela encenação de um enredo cujo final era do conhecimento de todos.

Em diálogo de mudos, a Emenda Constitucional foi aprovada por 14 votos em primeira votação. O petebista Guilherme Zaire estava ausente. Eram 14h45.

Às 15 horas teve início a segunda sessão extraordinária para votar, em segundo turno, a Emenda Constitucional. A partir desse momento o constrangimento deu lugar à desenvoltura dos defensores do que havia sido orquestrado.

O deputado Eloy Abud pediu a palavra para falar da sua satisfação em votar favoravelmente à matéria, porque já se “poderia dizer que Casa e o Acre estavam se amoldando ao Movimento Revolucionário de 1º de abril”. O parlamentar deixou na entrelinha o verdadeiro objetivo da votação quando externou o seu desejo de o Estado tomar novos rumos.

A fala de Abud incentivou outros parlamentares. Oposicionista ferrenho, Joaquim Cruz subiu à tribuna para fazer loas ao golpe militar de 1º de abril e concitar a Assembleia Legislativa a eleger um novo governador, embora houvesse um democraticamente eleito em outubro de 1962.

O terceiro orador seguiu o mesmo raciocínio dos oradores anteriores. Benjamin Ruella, em tese era do PTB e aliado do governador, mas não se comportou dessa maneira. Sua fala foi no sentido de cooperar com “as Forças Revolucionárias, a  fim de que o país, incluindo o Acre, tivesse dias melhores”.

Eram 15h55 quando a matéria foi novamente aprovada por 14 votos. Os deputados davam por encerrado mais um ato do enredo que trouxe para o palco da história do Acre a ditadura militar que perdurou durante 21 anos no país.

Aprovada a Emenda Constitucional, os deputados não arredaram os pés da Assembleia Legislativa. Esperavam pelo desfecho do último e decisivo ato.

Eram 22 horas a terceira sessão extraordinária começou. Os 14 deputados iriam apenas ratificar o que sabiam de cor e salteado.  Se reuniram apenas para comunicar oficialmente a renúncia do governador José Augusto de Araújo.

Pressionado por forças militares, José Augusto de Araújo, assim como o seu tempo à frente do Poder Executivo do Acre, foi breve. Sua carta de renúncia limitou-se a quatro linhas.

O mandato do primeiro governador democraticamente eleito na história do Acre terminou dessa forma, em carta enviada ao presidente da Assembleia Legislativa:

“Senhor presidente,

De acordo com a alínea B, item II, do artigo 24, da Constituição do Estado, comunico a essa Assembleia que, nesta data, renuncio ao cargo de governador do Estado do Acre, para o que fui eleito em 7 de outubro de 1962”

José Augusto de Araújo não rubricou a carta com a sua assinatura oficial. Fez apenas um rabisco. O documento, embora tenha sido apresentado no dia 8 de maio de 1964, estava datado como se houvesse sido redigido no dia anterior.

A farsa precisava ser mais bem montada. Naquele instante, o jovem professor saiu do governo para entrar na história.  

Eleição de Cerqueira: a ditadura se instala no Acre

Após a leitura da carta-renúncia de José Augusto de Araújo pelo deputado Geraldo Reis Fleming, um militar que sabia muito bem o que houvera transcorrido nos bastidores, o presidente da Assembleia Legislativa, José Fares, declarou vago o cargo de governador do Acre.

Fares facultou a palavra, mas ninguém quis falar. O silêncio tomou conta do ambiente.

Naquele momento, o presidente do Legislativo comunicou ao Plenário que seria eleito, por via indireta, o novo governador consoante ao Ato Institucional aprovado pela Casa.

A sessão foi suspensa por 10 minutos. Na volta aos trabalhos, Fares anunciou:

– Comunico ao Plenário que, de acordo com a indicação dos líderes de bancada, esta mesa diretora acaba de receber o nome do capitão Edgard Pedreira de Cerqueira Filho como candidato ao cargo de governador do Estado.

O processo de votação foi de caráter nominal. Os 14 deputados presentes votaram no capitão. Apenas Guilherme Zaire estava ausente. Confirmada a eleição indireta, a palavra novamente foi facultada. Novamente todos emudeceram. Pareciam envergonhados e acovardados.

Os deputados, no entanto, tinham pressa em comunicar que a trama havia transcorrido como o combinado. José Fares indicou os deputados Carlos Afonso e Antônio Barros, os líderes do PSD e do PTB, para irem até onde estava Edgard Pedreira de Cerqueira Filho comunicar a sua eleição. A sessão foi novamente suspensa por 15 minutos.

Obedientes e querendo mostrar serviço, os deputados agiram rápido, mas não foram felizes na empreitada. Cerqueira Filho mandou avisar que não iria assumir o posto naquele dia.

Após a missão mal sucedida, Carlos Afonso subiu à tribuna para anunciar que esteve na residência do capitão e solicitou que o mesmo se dirigisse à Assembleia Legislativa para tomar posse.

– Disse-me, então, o capitão Edgard Pedreira de Cerqueira que a sessão de posse seja realizada amanhã, às 11 horas, em virtude de motivos imperiosos. Está a comunicação que trouxe do governador eleito para esta Assembleia.

Recebido o recado, o presidente da Assembleia Legislativa encerrou a sessão e convocou outra para a data e horário sugerido por Cerqueira. Antes, porém, agradeceu aos nobres deputados porque, segundo ele, se conduziram de maneira correta no que classificou de ato histórico para a vida político-administrativa do Estado.

– As responsabilidades sobre os ombros do novo chefe do Executivo acreano são muito grandes. Cabe aos representantes do povo acreano uma tarefa árdua para que o novo governador eleito obtenha em sua gestão bom êxito e sirva com lealdade ao nosso Estado.

Agradeço mais ainda a compreensão demonstrada pelos demais componentes desta Assembleia, e espero também que o povo acreano saiba interpretar a atitude que acabamos de tomar, nesse momento de tanta responsabilidade para a vida de nosso país.

Eram 23 horas e 40 minutos quando os deputados encerram os trabalhos. Estavam crentes de que tinham cumprido os seus deveres.

A posse – Treze deputados estavam presentes na Assembleia Legislativa, no dia 9 de maio de 1964. Presidida por Joaquim Cruz, a sessão iniciou às 11 horas. Edgard Pedreira de Cerqueira Filho foi introduzido na Casa pelos líderes partidários e tomou assento ao lado direito do presidente da mesa diretora.

Cerqueira Filho prestou juramento:

– Prometo manter, defender e cumprir a Constituição e as leis da República e do Estado, servindo com honra, probidade e dedicação ao povo do Acre.

Feito o juramento, a banda de música da Guarda Territorial executou o hino nacional. Em seguida, Geraldo Reis Fleming fez a leitura do termo de posse, que foi assinado pelo deputado Joaquim Lopes da Cruz e Cerqueira Filho.

Joaquim Cruz facultou a palavra. Naquele momento teve início a uma série de loas ao governador eleito indiretamente. O primeiro a falar foi o deputado Carlos Afonso. Falou pelo Partido Social Democrático (PSD). Pediu desculpas por “ser simples, mas sincero”.

Carlos Afonso era subalterno político e militar de Cerqueira Filho. O parlamentar ocupava posto de 2º tenente-médico R/2 do Exército Brasileiro. Segundo ele, o Brasil vivia a época da reforma por meio da pura essência do Movimento Revolucionário de 1º de abril.

– Estou certo, como o povo do Acre está esclarecido, que vossa excelência é o porta-estandarte das reformas em nosso Estado, declarou.

O deputado que levou o recado a Cerqueira salientou que aquele governador representava o “inabalável soldado disposto a servir ao Brasil, o cumpridor fiel do dever, o patriota autêntico da causa democrática”.

O discurso seguinte foi de Benjamin Ruella. Membro do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), a mesma legenda de José Augusto de Araújo, o deputado foi breve na fala, mas também rasgou elogios a Cerqueira Filho. Disse que o representante do regime militar fora eleito num momento histórico para o Acre e o Brasil, a partir da reafirmação de propósitos democráticos que nortearam a casa legislativa.

O petebista terminou desejando ao governador que fizesse uma administração feliz e pudesse “agradar a gregos e troianos, não apenas para a felicidade do Acre, mas também para a grandeza do Brasil”.

O orador seguinte era da UDN.  Chamava-se José Fonseca. Disse confiar no espírito patriótico do governador e desejou que Cerqueira fosse uma baluarte da vida representativa do Estado.

O último deputado a fazer o uso da palavra foi Eloy Abud, também do PTB. O correligionário de José Augusto de Araújo não poupou elogios ao capitão.

Abud disse:

– Ao som do Hino Nacional o nosso Estado toma, na hora presente, novos rumos. Somente agora, embora tardiamente, adapta-se perfeitamente ao regime democrático, pleno de liberdade, implantando no país pelo alto comando revolucionário.

Não foram apenas os deputados que fizeram discursos. O bispo dom Giocondo Maria Grotti também falou.

O Prelado do Acre e Purus lembrou que não queria apenas prestar uma felicitação a Cerqueira. Afirmou que aproveitou a oportunidade para apresentar uma colaboração que sempre prestou à todas as autoridades, “no que se prende de belo, de bom e de sagrado, em prol da coletividade”.

Maria Grotti acreditou que teria sempre a liberdade de comparecer ao gabinete do governador para uma palavra de aprovação, de estímulo, como também de acertos.

– O povo que o governamos, ainda que julgando diferente, é sempre o mesmo.

Declarando ter fé que tanto ele quanto Cerqueira sempre encontrariam modo para trabalharem juntos, porque acreditava ser o ideal de ambos sempre a verdade, a justiça e a paz, o religioso aconselhou:

– Comece o seu governo acompanhado de esperança de todos, e tenha fé que todos, neste dia, começando por mim, estão abrindo a Vossa Excelência, totalmente, um crédito de confiança.

A sessão foi encerrada às 12h10, com o presidente da Assembleia Legislativa, Joaquim Cruz, desejando ao governador empossado uma profícua administração. Foi escrita ali uma das páginas mais infelizes da nossa breve história.

O discurso de Cerqueira

Edgard Pedreira de Cerqueira Filho fez um breve discurso de posse. Parecia ter presa para sair da Assembleia Legislativa. Fez um curto relato da sua trajetória militar e assumiu compromissos genéricos com o Acre e os acreanos.

Leia o discursos:

Há doze anos atrás, prestava eu, perante a bandeira nacional, o juramento de oficial do Exército Brasileiro. Nestes doze anos de oficialato, nada mais me norteou na vida do que cumprir aquilo que prometera. Graças a Deus, até hoje, consegui manter-me nessa linha. Há poucos minutos prestava novo juramento, agora prometendo servir com honra, probidade e dedicação ao povo do Acre.

Tenho certeza que cumprirei o prometido, com o sacrifício da própria vida, e dos meus familiares.

Não conheço, não conheci e jamais conhecerei a palavra desonestidade. Nunca deixei para amanhã o que deveria fazer hoje. O que se tem a fazer, faça-se. Cumpra-se a lei, doa a quem doer. O meu governo basear-se-á, sucintamente em duas palavras: honestidade e trabalho.

Tenho convicção de que, com o apoio dos senhores deputados e do povo, farei um bom governo.

Sou homem afeito à palavras. Para mim, só tem valor aquelas que brotam do fundo do coração. Jamais fui insincero na vida. Afirmo-vos que as palavras por mim proferidas saíram do meu eu. Com esta mesma sinceridade despedi-me da 4a Companhia de Fronteiras há momentos atrás.

O Palácio do Governo estará sempre aberto para todos, sem distinção de raça, cor ou credo.

Farei um secretariado escolhendo elementos de real valor, em olhar cores políticas.

Assumo o governo do Estado com carta branca e o apoio irrestrito de todos os partidos políticos, na certeza de que todos os problemas do Acre serão definitivamente solucionados.

Só tenho uma meta a cumprir. Elevar este Estado, que há pouco tempo conheço, mas que já amo bastante, em paridade aos demais Estado da Federação.

Termino concitando a todos, pedindo mesmo, deputados ou funcionários, todos enfim, que se unam em torno do governo, para trabalhar em benefício do povo deste Estado tão necessitado.  

Em 2014, 50 anos depois da covarde cassação, a Assembleia Legislativa anulou a cassação de José Augusto de Araújo.

Foi uma iniciativa do então presidente da casa, Edvaldo Magalhães (PC do B). Mas as sequelas de um regime de exceção são irreparáveis.

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vale a leitura