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Morre Fernando Katukina, liderança indígena no Acre

A morte por parada cardíaca ocorreu semanas depois dele ter sido o primeiro a se vacinar contra a Covid-19 para dar o exemplo aos acreanos. Na imagem acima, a liderança Fernando Katukina, que teve uma vida marcada pela luta pela educação e pelos direitos dos Nôke Kôi (Foto Odair Leal/Secom-AC)

Por Fabio Pontes 

Na tarde de 19 de janeiro, o cacique Fernando Rosas Kapi Icho Katukina recebia, em seu braço direito, a primeira dose da CoronaVac. Usando um imponente cocar feito com penas de arara e um colar (matte) de elevado valor espiritual, a liderança indígena decidiu se voluntariar para incentivar o povo Nôke Kôi a tomar a vacina. Ele próprio já havia sido infectado em 2020, e sabia da importância de lutar contra a Covid-19. Mas Fernando Katukina não pode receber a segunda dose do imunizante, prevista para 16 de fevereiro. Na madrugada desta segunda-feira (1º), ele sofreu uma parada cardíaca e morreu, aos 56 anos.

“Há 11 anos, ele lutava contra um quadro de diabetes bastante grave e há quatro veio a ser diagnosticado com hipertensão, tendo falecido por volta das 4 horas em sua casa, na Aldeia Campinas, vítima de uma parada cardíaca”, diz a nota do Dsei Alto Juruá, responsável pelo atendimento médico nas sete aldeias da TI Campinas/Katukina. Habitada por 756 pessoas, ela é cortada ao meio por um traçado de 18 quilômetros da BR-364, que interliga a capital Rio Branco a Cruzeiro do Sul, no Vale do Juruá. Fernando Katukina morreu na aldeia Campinas (Kamanawa), a mais populosa dentro do território indígena e a 68 quilômetros da sede urbana de Cruzeiro do Sul. 

Tão logo a notícia da morte de Fernando Katukina passou a circular, negacionistas tentaram ligar o fato a possíveis efeitos adversos da vacina. Foram, inclusive, ancorados pela imprensa local, que publicou manchetes como “Morre o primeiro indígena a tomar a CoronaVac no Acre” sem a devida contextualização. Fake news relacionadas à morte da liderança, criminosas, chegam em um momento em que muitos indígenas do Acre e de outras localidades se recusam participar da imunização.

Tanto o Dsei do Alto Rio Juruá quanto a Coordenação Regional do Juruá – da Fundação Nacional do Índio (Funai) – deixaram claro que Katukina morreu de parada cardíaca. Em nota de pesar, o distrito sanitário lamentou a perda e deixou claro que Fernando Katukina era acompanhado por uma Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena (EMSI) e por especialistas. 

A disposição da liderança de oferecer seu braço para receber a primeira vacina entre os povos indígenas do Vale do Juruá tinha muito mais do que um valor simbólico. A vacinação era também um ato político por conta da presença do governador Gladson Cameli (PP) naquela quadra esportiva de um colégio de Cruzeiro do Sul. Katukina queria servir de exemplo para os quase 24 mil indígenas acreanos.

No Acre, são 2.500 indígenas infectados pela Covid-19

Na região do Alto Rio Juruá, segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, 851 pessoas testaram positivo para Covid-19 até esta segunda-feira (1º). Na região, morreram 10 indígenas. No último boletim, divulgado em 28 de janeiro, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab ) informou que 33.758 indígenas foram confirmados com o novo coronavírus de 141 povos da Amazônia brasileira. Das 757 pessoas mortas pela Covid-19, 28 foram no estado do Acre – que registrou 2.445 casos da doença entre indígenas.

“Aquilo [ser o primeiro vacinado] era o ato de uma liderança, que tomou à frente para animar seu povo. O líder é aquele que anima o pessoal”, define Edilene Coffaci de Lima, professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná.

Durante os primeiros anos da década de 1990, Coffaci conviveu por 20 meses com os Nôke Kôi (Katukina) para elaborar sua dissertação de mestrado e sua tese de doutorado. 

Foi por essa época que, de acordo com a antropóloga Edilene, Fernando estava em seu processo de se tornar líder dos Nôke Kôi. “Ele morreu justo quando atingiu o nível de uma liderança plena, uma fase muito importante, quando ele reunia todos os conhecimentos de seu povo, quando estava em sua plenitude. Outra liderança terá que ser formada”, explica.

Fernando passou de aluno a professor indígena

Ainda na década de 1980, o jovem Fernando Katukina passou a mostrar sua afinidade com a educação, dominando as escritas e falas da língua nativa Nôke Kôi (Noke Vana, tronco linguístico pano) e do português. A indigenista e docente Vera Olinda acompanhou de perto esse processo de alfabetização de Fernando, que logo depois passaria de aluno a professor indígena. A formação enquanto professor aconteceu por meio do projeto Experiência de Autoria, desenvolvido pela Comissão Pró-Indio do Acre (CPI-Acre). 

“Temos lembranças do Fernando se alfabetizando com os professores indígenas à luz de lamparinas. Dele trabalhando com o alfabeto na língua dele. Buscando a definição de uma ortografia da língua de seu povo. Pensada e estabelecida pelos próprios indígenas com o apoio, obviamente, de linguistas”, diz Vera Olinda, secretária-executiva da CPI-Acre. “Ele tem uma trajetória na educação e, depois, cresceu como liderança, em especial no plano de mitigação da pavimentação da rodovia, que foi muito conflituoso e tenso. Mesmo assim, o Fernando, entre diferentes ideias e conflitos, conseguiu se manter líder.” 

Em nota oficial, o governador Cameli lamentou a morte da liderança, ressaltando a preocupação dele com a educação: “O indígena teve grande atuação junto ao governo estadual na busca pelos direitos dos povos indígenas e chegou a ser servidor da escola Tãmãkãyã.”

O sertanista Antônio Macedo, o txai Macedo, um dos mais antigos servidores da Funai no Acre, conheceu Fernando em 1982, quando o cacique passava da adolescência para a maioridade. No ano seguinte, Katukina se inscreveu no curso de formação de professores indígenas da CPI-Acre. “O Fernando sempre foi muito participativo, gostava de se comunicar, falava muito bem o português e por isso foi escolhido entre os jovens para fazer o curso de professor.  Estava sempre em busca de intercâmbio e contatos com pessoas fora de seu povo. Estes conhecimentos fizeram dele o cacique e depois o cacique-geral”, afirma. 

De acordo com o sertanista, Fernando deixou uma contribuição muito forte, principalmente na conquista do território onde hoje vivem os Nôke Kôi, mas também pelas ações para a educação e a saúde indígena. Outro legado importante, que teve a participação direta dele, foi a revitalização e a valorização da cultura e das tradições dos Katukina. “Se hoje temos vários indígenas doutores, uma parte desta conquista teve a participação do Fernando.”

Liderança procurou revitalizar a cultura Nôke Kôi

“O Fernando está presente em todos os momentos da revitalização da cultura Nôke Kôi, desde a execução do plano de etnozoneamento da terra indígena até na conquista do território. Este é o legado que ele deixa para o seu e para outros povos do Vale do Juruá”, completa txai Macedo. Com uma área de 32.624 hectares, a TI Campinas/Katukina foi homologada em 1993. As sete aldeias se espalham pelos 18 quilômetros da BR-364 que a cruzam. 

Cada uma leva o nome dos diferentes clãs que formam o povo Nôke Kôi: Waninawa, Varinawa, Kamanawa, Satanawa e Masheya.  Fernando pertencia ao clã Kamanawa, que é o mais populoso, estando concentrados na aldeia Campinas. O nome Campinas é referência a um rio que que passa por dentro do território indígena.  Como cacique-geral, Fernando exercia sua autoridade sobre todos os diferentes clãs Nôke Kôi. 

Além da TI Campinas/Katukina, o povo está presente em duas aldeias dentro da TI do Rio Gregório, município de Tarauacá, habitada em maior número pelos Yawanawa. De acordo com a antropóloga Edilene Coffaci, foi numa dessas aldeias do Rio Gregório que Fernando Katukina nasceu. Logo depois seus pais se mudaram para a região que hoje é o território do povo, formada pelos antigos seringais. “A presença dos Katukina naquela região tem um registro centenário. Em 1920, um missionário francês que andava pelo Juruá já tinha escrito sobre a presença deles por ali”, diz Coffaci. 

Os Nôke Kôi foram aproveitados como mão-de-obra para trabalhar na extração do látex das seringueiras entre a primeira e a segunda metade do século passado. Com a falência da economia extrativista a partir da década de 1960, muitos indígenas ficaram sem trabalho e renda. Nos anos 1970 começou o processo de construção de estradas na Amazônia, incluindo a BR-364, que cruza o Acre de um extremo ao outro. A obra foi feita pelo Exército, por meio do 7º Batalhão de Engenharia e Construção. Os Nôke Kôi ofereceram aos militares suas habilidades de lidar com a floresta para trabalharem na abertura da estrada. Os seus acampamentos de “operários” da estrada transformaram-se em aldeias, permanecendo até hoje.

Os Katukina corriam riscos de perder as tradições

“A estrada é quase que a dor e a delícia da vida deles. Ao mesmo tempo que ela permite essa facilidade de acesso à cidade para ir sacar seus benefícios, comprar as coisas, ela também traz muitos problemas”, afirma a antropóloga. Entre os problemas está a invasão do território para a caça e pesca ilegal – comprometendo a segurança alimentar dos Nôke Kôi – além da retirada de madeira em suas bordas. 

“O primeiro impacto levado pela pavimentação da estrada foi uma espécie de paternalismo [pelo Estado] que levou os Katukina a abandonarem certos costumes e até a sua lavoura. Mas isso tudo foi sendo consertado pela própria consciência dos indígenas”, diz o sertanista Antônio Macedo. Na análise da antropóloga  Edilene, o uso da língua nativa é uma das características que os Nôke Kôi jamais perderam, mesmo com todas as pressões exercidas pela rodovia e a vizinhança no entorno, formada por unidades de conservação e projetos de assentamento. “Eles não abrem mão da língua deles. É quase um mecanismo de defesa deles.” 

E o cacique-geral teve papel essencial para a recuperação e manutenção da ancestralidade Nôke Kôi. “A gente vê que o Fernando fez escola, deixou uma luta. Hoje mesmo falei com algumas pessoas da aldeia e vieram fortes as respostas de que vão continuar a luta dele, que ele se foi, mas a luta dele ficou”, diz a indigenista Vera Olinda.

Matéria originalmente publicada no site Amazônia Real.

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