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Coronavírus nos EUA se depara com Trump e um frágil sistema de saúde

A atitude negacionista do presidente e a ausência de saúde pública universal, combinadas com erros iniciais, lançam incógnitas sobre o alcance real da crise no país

PABLO GUIMÓN – Washington

Além de sérios erros, como a má distribuição de testes de diagnóstico, que faz com que o número real de pessoas infectadas no país seja quase uma incógnita, a crise do coronavírus (Covid-19)chegou aos Estados Unidos em meio a dois graves problemas. Primeiro, a personalidade vulcânica de um presidente em pleno ano eleitoral, com medo do impacto da epidemia na economia, cuja pujança ele contempla como seu principal argumento para a reeleição. E, segundo, as fraquezas que dificultam a assistência à saúde em uma das únicas economias desenvolvidas que carecem de saúde pública universal, e onde milhões de cidadãos evitam visitas ao médico por medo dos custos envolvidos.

Em suas declarações públicas desde o início da crise, Donald Trump espalhou o ceticismo, relativizou a escala da crise e criticou a versão alarmista que ele acha que a mídia está apresentando. Nesta segunda-feira, ele apontou no Twitter a suposta responsabilidade das “notícias falsas” na crise e insistiu em minimizar o seu alcance. “No ano passado, 37.000 norte-americanos morreram de gripe comum. É uma média entre 27.000 e 70.000 mortes por ano. Nada foi fechado, a vida e a economia seguem em frente. Atualmente, 546 casos de coronavírus foram confirmados, com 22 mortes. Pensem nisso!”, ele tuitou. Sua campanha de negação da crise levou alguns colunistas a se referirem ao coronavírus como a “Chernobyl de Trump”.

Após a declaração da Organização Mundial da Saúde (OMS) de que o surto de coronavírus é uma “pandemia global” —com mais de 118.000 casos em 114 países e 4.291 mortes―, Trump não perdeu tempo em enaltecer pelo Twitter a capacidade dos EUA de superarem a crise. “Estou totalmente preparado para usar todo o poder do Governo federal para lidar com o atual desafio do coronavírus!”, tuítou. “Nós temos os melhores cientistas, médicos, enfermeiras e profissionais de saúde. Eles são pessoas incríveis que fazem coisas fenomenais todos dos dias…Juntos, estamos elaborando um plano para prevenir, detectar, tratar e criar uma vacina contra o coronavírus para salvar vidas na América e no mundo. América vai resolver isso!”, escreveu o presidente dos EUA. Mas é difícil acreditar que ele conseguirá corrigir os deslizes recentes apenas com tuítes.

Durante uma visita na semana passada à sede do Centro para o Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), responsável por proteger o país contra ameaças à saúde e garantir a segurança sanitária, o presidente exibiu sua habitual falta de humildade “Gosto desta coisa. Eu realmente a entendo. As pessoas ficam surpresas em ver como entendo. Cada um destes médicos diz: ‘Como você sabe tanto sobre isto?’. Talvez eu tenha uma habilidade natural. Talvez eu devesse ter feito isso em vez de me candidatar à presidente”, afirmou.

Mas suas declarações públicas mostraram uma ignorância profunda e falta de cuidado sobre o que é, por exemplo, o processo de comercialização de vacinas (cuja eficácia não hesitou em questionar no passado) e, de modo geral, sobre a natureza e o escopo real da crise produzida pelo coronavírus. “Quando chegar abril, em teoria, quando o clima está um pouco mais quente, vai embora milagrosamente”, argumentou em 12 de fevereiro, contradizendo o próprio diretor do CDC, que dias antes previra que o vírus continuaria ativo por muito mais tempo.

“Estamos baixando de forma bastante substancial, não aumentando”, afirmou Trump em 26 de fevereiro sobre os casos de coronavírus nos EUA, acrescentando: “Temos tudo sob controle”. Mas já há mais de 1.004 contágios confirmados e 32 mortes pelo coronavírus, que já atingiu 32 Estados do país. Além disso, especialistas temem que a situação real possa ser muito pior, porque inicialmente foram distribuídos kits defeituosos e estabelecidas diretrizes muito estritas para os testes, posteriormente ampliadas. O CDC informou terça-feira que analisou 8.500 amostras até então. Mas são analisadas múltiplas amostras por paciente, de modo que o número de pessoas examinadas é menor. De qualquer forma, a extensão dos exames é muito mais limitada do que em países como a Coreia do Sul, onde são realizados testes de diagnóstico em 10.000 pacientes por dia.

Há 29 milhões de pessoas sem seguro médico no país. Muitas outras têm apólices que incluem franquias, que em 2019 custavam em média 1.655 dólares (7.780 reais). Por isso, muitas pessoas não pensam em ir ao médico, mesmo que tenham sintomas similares aos provocados pelo coronavírus. “Os estudos indicam que, em 2017, 9% dos adultos americanos demoraram para procurar, ou não procuraram, assistência médica devido a seu custo. Em adultos com saúde relativamente pior, esse número chega a 19%, e em pessoas sem seguro médico, a 29%. Nem todo mundo precisa ir ao médico, é claro, mas esses números dizem muito sobre o problema que enfrentamos”, explica a ex-assessora de saúde da Casa Branca Christen Linke Young, integrante da iniciativa para a Saúde Pública da Universidade do Sul de Califórnia e do instituto Brookings.

Lidar com o ceticismo do presidente dos EUA, que se tornou uma fonte de desinformação, é um desafio a mais para os funcionários de saúde, forçados a um delicado equilíbrio em suas aparições públicas e nas interações com a Administração, que só dificulta a resposta do Governo federal à crise. Uma resposta que enfrenta outro problema, este de caráter estrutural, relacionado com as deficiências que prejudicam a saúde nos Estados Unidos.

Teoricamente, o CDC oferece o teste de forma gratuita, desde que seja prescrito por um médico, e grandes seguradoras garantiram que tampouco cobrarão pelo serviço em alguns Estados. Mas circulam histórias desalentadoras na imprensa. Como a de Osmel Martinez Azcue, que contou no Miami Herald como, ao voltar com sintomas de gripe de uma viagem à China, foi a um hospital de Miami para fazer os exames de coronavírus. O resultado foi que aquilo que ele tinha era gripe. E também uma conta de 3.270 dólares (15.390 reais) quando chegou em casa.

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