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Amazônia: o lugar mais longe de uma UTI no Brasil

Falta de acesso aos serviços de saúde contribui para que a expectativa de vida na Amazônia Legal seja inferior à média brasileira

Cristiane Segatto, O Estado de S.Paulo

11 de novembro de 2021 | 05h0

A falta de acesso aos serviços de saúde, provocada pelas longas distâncias e pela escassez de profissionais e de recursos nas unidades básicas e nos hospitais, é um dos fatores que contribuem para que a expectativa de vida na Amazônia Legal seja inferior à média brasileira. Em 2019, antes da pandemia que afetou gravemente a região, a distância a ser percorrida pelos moradores de algumas localidades até a UTI mais próxima era de 2 a 3 vezes maior do que no restante do País.

A informação faz parte do estudo A Saúde na Amazônia Legal, liderado pelo pesquisador Rudi Rocha, professor da FGV-SP e diretor do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps), divulgado com exclusividade pelo Estadão. “A saúde na região está ficando para trás”, afirma Rocha. “Ela avança mais lentamente que no restante do País.”

A Amazônia Legal é composta por nove Estados: Pará, Rondônia, Amazonas, Mato Grosso, Amapá, Tocantins, Maranhão, Roraima e Acre. Esse conjunto abarca três biomas: a Amazônia e parte do Cerrado e do Pantanal.

A distância média de uma sede municipal ao estabelecimento mais próximo com serviço de urgência e emergência disponível pelo SUS era de 15 km em 2019. No restante do País, a distância média era de pouco menos de 10 km. Os pesquisadores encontraram também dificuldades de oferta de serviços de média complexidade, como biópsias, punções, transfusão de sangue, atendimento pré-hospitalar e exames (eletroencefalograma, ultrassonografia, raios X etc).

Conhecimento

A enfermeira Maria Adriana Moreira, secretária de Saúde de Manicoré, município a 400 km de Manaus, vive na região há 25 anos e conhece bem as dificuldades dos gestores locais. Enquanto trabalhava na Secretaria Estadual de Saúde, ela teve a oportunidade de visitar todos os 62 municípios do Amazonas.

Segundo ela, a baixa densidade demográfica dificulta o acompanhamento das comunidades ribeirinhas. “No meu município, a população fica muito dispersa, o que encarece a logística para fazer os atendimentos no local onde as pessoas moram”, afirma. “As mulheres, por exemplo, não podem vir até a zona urbana para fazer o pré-natal, por exemplo. Uma das nossas comunidades fica a 200 km de distância da sede do município. A população é muito carente. Não tem dinheiro nem transporte para vir à unidade básica de saúde.”

A infraestrutura das UBS é mais precária na Amazônia Legal, revela o estudo do Ieps. A análise de dados referentes aos mais de 30 mil postos de saúde no Brasil indica que, com exceção das UBS localizadas nas capitais, apenas 49% das unidades da região contavam com acesso à internet em 2019. No restante do Brasil, a proporção era de 76%.

Apenas 19% das unidades na região tinham geladeiras exclusivas para medicamentos na farmácia em condições de uso, ante 32% fora da região. Além disso, 47% das unidades na Amazônia Legal não tinham nenhum ou tinham pelo menos um glicosímetro em condições de uso, ante 60% no restante das unidades do País.

Esse cenário ajuda a entender por que a expectativa de vida de quem mora na região avança mais lentamente. Segundo o estudo, o aumento médio de expectativa de vida no Brasil entre 2010 e 2019 (antes da pandemia) foi de 2,64 anos. Cinco dos nove Estados que compõem a Amazônia Legal ficaram abaixo dessa média. O menor crescimento ocorreu no Pará e em Rondônia (1,8 anos). As dificuldades de acesso ocorrem também quando os doentes precisam de tratamentos para doenças renais ou câncer que, em geral, exigem idas constantes aos serviços. Em 2019, o estabelecimento mais próximo com diálise estava, em média, a 134 km na Amazônia Legal e a 43 km nas outras regiões. No caso da quimioterapia, as distâncias observadas foram de 188 km na área estudada e de 75 km no restante do País.

Como melhorar

Nesse contexto, fortalecer a atenção primária é essencial. O estudo destaca que as equipes de saúde básica são fundamentais na provisão de serviços de saúde na Amazônia Legal. Embora a cobertura populacional pelo programa de saúde da família seja grande na região, o número de equipes por km² é quase 9 vezes inferior ao que existe no restante do País.

Na Amazônia Legal existe, em média, 1,3 equipe de atenção básica à saúde por 1.000 km², enquanto no restante dos país essa razão é próxima de 10,6 equipes. “Se tem um lugar onde a atenção primária precisa ser a melhor do Brasil, esse lugar é a Amazônia Legal”, diz o pesquisador Rocha.

Uma das iniciativas mais importantes para melhorar o acesso da população à atenção primária foi a criação das equipes de Saúde da Família Ribeirinhas e Fluviais. As Unidades Básicas de Saúde Fluviais (UBSF) foram responsáveis por melhorias nas condições de assistência à população e de maior e melhor cobertura no que diz respeito à Atenção Básica, sobretudo considerando as comunidades mais remotas, distantes das áreas urbanas e acessíveis somente por meio de 6 a 24 horas de barco.

Além disso, é preciso melhorar o financiamento, levando em consideração as peculiaridades da região. O diretor do Ieps destaca a importância de existir uma melhor articulação entre os municípios para que eles possam estabelecer consórcios e outras formas de aumentar a oferta de serviços na região. “Não podemos deixar a Amazônia Legal para trás, mas é um desafio”, afirma Rocha. “Se o tema não entrar na agenda do País e não começarmos a ajudar os gestores que estão lá na ponta, o problema vai aumentar”, conclui.

Em envelhecimento, região sofre ‘tripla carga de doenças’

A Amazônia Legal está em processo de envelhecimento, o que contribui para o aumento da mortalidade por doenças crônicas, como hipertensão e diabete. No entanto, diferentemente do que ocorre no restante do País, os habitantes da região têm menos chance de receber tratamento ou socorro em situações de emergência.

A desvantagem da região em termos de expectativa de vida é determinada pela mortalidade em três grupos principais: os idosos acima de 60 anos, as vítimas de violência e acidentes de transporte (em especial entre 15 e 39 anos) e as crianças com até 5 anos mortas por doenças infecciosas e parasitárias (muitas provocadas pela poluição dos rios, pelo acúmulo de lixo e pela falta de tratamento de água e esgoto).

Na região, os males não transmissíveis matam três vezes mais que as doenças infecciosas e as causas externas. “A Amazônia Legal enfrenta uma tripla carga de doenças”, diz Rocha. “Ao mesmo tempo em que aumentam mortes por doenças crônicas, os óbitos causados pelas infecciosas e por causas externas não cedem.”

Falta de equipamentos dificulta o tratamento de pacientes com câncer

O tratamento contra o câncer na região amazônica enfrenta sérios problemas que vão desde a falta de hospitais até a ausência de materiais e equipamentos necessários ao tratamento adequado dos pacientes que buscam, na sua grande maioria, unidades de saúde que atendem por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).

A servidora pública Silvania Lima Pereira Lopes, de 52 anos, que foi diagnosticada com um câncer no colo do útero em novembro de 2020, é uma das vítimas do sistema de saúde que nem sempre supre a necessidade de quem o busca. Moradora de Rio Branco (AC), ela passou por cirurgia em dezembro daquele ano.  Apesar disso, só conseguiu iniciar as sessões de quimioterapia em abril de 2021, após muitas idas e vindas do Hospital de Câncer do Acre (Unacon). Atualmente, faz acompanhamento no Hospital de Amor de Porto Velho (RO), distante quase 500 quilômetros da capital acreana.

“Fiz a cirurgia, e não demorou. Mas quando fui fazer os exames de retorno, o médico disse que, pelos exames, estava tudo bem. Resolvi ir numa consulta em Porto Velho, e fiz os mesmos exames, mas todos eles deram a presença (do câncer) e precisei reiniciar o tratamento, mesmo após a cirurgia”, relata.

Silvania conta que, desde então, está com as consultas em dia, mas teme precisar da radioterapia e não conseguir passar pelo tratamento conforme as recomendações médicas. “Meu desejo é continuar o tratamento até o fim, porque agora terei mais uma consulta e apresentação dos exames. Depois disso, devo iniciar a radioterapia”, completa.

O temor de Silvania é semelhante ao da costureira Adelaide de Fátima Alencar, de 56 anos, que vive em Guajará (AM). Ela teve câncer na mama, e descobriu o problema de saúde em maio de 2020. Adelaide alega que teve dificuldade para se deslocar até a capital do Acre, onde precisava de radioterapia, mas não conseguiu o atendimento necessário.

“Precisei retirar a mama e isso me fez sofrer muito. Se eu tivesse conseguido fazer a quimioterapia e a rádio a tempo, acredito que talvez eu ainda tivesse as duas mamas. Precisei ser encaminhada para Porto Velho. Lamentável essa situação”, comenda a costureira.  Adelaide ainda faz acompanhamento e descobriu, no mês de junho desse ano, que está com um tumor no seio esquerdo. “Agora que o câncer voltou, vou precisar da quimioterapia, e ainda bem que o Estado aqui já consegue disponibilizar e tratara”, completa.

Em junho deste ano, o serviço de radioterapia oncológica da Fundação Hospitalar do Acre foi restabelecido após quase cinco anos suspenso. Até então, pacientes do Acre e sul do Amazonas precisavam ser referenciados, via Tratamento Fora do Domicílio, (TFD) para o Estado de Rondônia. / COLABOROU JOÃO RENATO JÁCOME.

Veja a publicação original no Estadão.

 

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