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“Juiz de merda”: Julgamento da parcialidade de Moro dá a Celso de Mello oportunidade de mostrar que Saulo errou

Por Paulo Henrique Arantes

José Celso de Mello Filho chegou ao Supremo Tribunal Federal em 1989 pelas mãos do presidente José Sarney. Ganhava um prêmio por sua atuação como secretário do consultor-geral da República, Saulo Ramos, uma espécie de Richelieu do governo de transição conduzido pelo maranhense, algo parecido com o que foi Márcio Thomaz Bastos, ministro da Justiça durante os governos Lula.

O decano do STF, que se aposentará em 13 de outubro, há tempos é considerado o farol da corte, aquele que tem a voz evocada, por exemplo, quando a instituição precisa esbravejar em defesa da democracia e de sua própria existência.

Quando duas dúzias de bolsonaristas foram às ruas pedir intervenção das Forças Armadas nos Poderes Legislativo e Judiciário, Celso de Mello enviou aos colegas de tribunal mensagem com o seguinte teor:

“É preciso resistir à destruição da ordem democrática, para evitar o que ocorreu na República de Weimar quando Hitler, após eleito pelo voto popular e posteriormente nomeado pelo presidente Paul von Hindenburg como chanceler da Alemanha, não hesitou em romper e em nulificar a progressista, democrática e inovadora Constituição de Weimar, impondo ao país um sistema totalitário de Poder.”

Na maioria das vezes, o decano demonstrou saber jurídico e apego à Constituição ao longo de sua jornada no STF. Mostrou-se também liberal nas votações de temas comportamentais, como a união estável de pessoas do mesmo sexo.

Numa longa entrevista a este repórter, em 2013, comprovou o extremo cuidado ético ao responder às perguntas, além de oferecer uma boa dose de empatia caipira – Celso de Mello é de Tatuí, o repórter é de Sorocaba. Foi uma conversa muito agradável, e uma verdadeira aula de Direito.

Mas, por que razão seu padrinho Saulo Ramos morreu, em 2013, rompido com ele? A história é pública, mas anda esquecida às vésperas de o ministro votar sobre a suspeição de Sérgio Moro no caso Lula/Triplex (se é que o HC será recolocado em julgamento até sua aposentadoria).

Eis um trecho do livro de memórias “Código da Vida”, de Ramos, lançado em 2007:

Terminado seu mandato na Presidência da República, Sarney resolveu candidatar-se a Senador. O PMDB — Partido do Movimento Democrático Brasileiro — negou-lhe a legenda no Maranhão. Candidatou-se pelo Amapá. Houve impugnações fundadas em questão de domicílio, e o caso acabou no Supremo Tribunal Federal.

Naquele momento, não sei por que, a Suprema Corte estava em meio recesso, e o Ministro Celso de Mello, meu ex-secretário na Consultoria Geral da República, me telefonou:

— O processo do Presidente será distribuído amanhã. Em Brasília, somente estão por aqui dois ministros: o Marco Aurélio de Mello e eu. Tenho receio de que caia com ele, primo do Presidente Collor. Não sei como vai considerar a questão.

— O Presidente tem muita fé em Deus. Tudo vai sair bem, mesmo porque a tese jurídica da defesa do Sarney está absolutamente correta.

Celso de Mello concordou plenamente com a observação, acrescentando ser indiscutível a matéria de fato, isto é, a transferência do domicílio eleitoral no prazo da lei.

O advogado de Sarney era o Dr. José Guilherme Vilela, ótimo profissional. Fez excelente trabalho e demonstrou a simplicidade da questão: Sarney havia transferido seu domicílio eleitoral no prazo da lei. Simples. O que há para discutir? É público e notório que ele é do Maranhão! Ora, também era público e notório que ele morava em Brasília, onde exercera o cargo de Senador e, nos últimos cinco anos, o de Presidente da República. Desde a faculdade de Direito, a gente aprende que não se pode confundir o domicílio civil com o domicílio eleitoral. E a Constituição de 88, ainda grande desconhecida (como até hoje), não estabelecia nenhum prazo para mudança de domicílio.

O sistema de sorteio do Supremo fez o processo cair com o Ministro Marco Aurélio, que, no mesmo dia, concedeu medida liminar, mantendo a candidatura de Sarney pelo Amapá.

Veio o dia do julgamento do mérito pelo plenário. Sarney ganhou, mas o último a votar foi o Ministro Celso de Mello, que votou pela cassação da candidatura do Sarney.

Deus do céu! O que deu no garoto? Estava preocupado com a distribuição do processo para a apreciação da liminar, afirmando que a concederia em favor da tese de Sarney, e, agora, no mérito, vota contra e fica vencido no plenário. O que aconteceu? Não teve sequer a gentileza, ou habilidade, de dar-se por impedido. Votou contra o Presidente que o nomeara, depois de ter demonstrado grande preocupação com a hipótese de Marco Aurélio ser o relator.

Apressou-se ele próprio a me telefonar, explicando:

— Doutor Saulo, o senhor deve ter estranhado o meu voto no caso do Presidente.

— Claro! O que deu em você?

— É que a Folha de S.Paulo, na véspera da votação, noticiou a afirmação de que o Presidente Sarney tinha os votos certos dos ministros que enumerou e citou meu nome como um deles. Quando chegou minha vez de votar, o Presidente já estava vitorioso pelo número de votos a seu favor. Não precisava mais do meu. Votei contra para desmentir a Folha de S. Paulo. Mas fique tranqüilo. Se meu voto fosse decisivo, eu teria votado a favor do Presidente.

Não acreditei no que estava ouvindo. Recusei-me a engolir e perguntei:

— Espere um pouco. Deixe-me ver se compreendi bem. Você votou contra o Sarney porque a Folha de S. Paulo noticiou que você votaria a favor?

— Sim.

— E se o Sarney já não houvesse ganhado, quando chegou sua vez de votar, você, nesse caso, votaria a favor dele?

— Exatamente. O senhor entendeu?

— Entendi. Entendi que você é um juiz de merda! Bati o telefone e nunca mais falei com ele.

Pelo que escreveu Saulo Ramos, portanto, Celso de Mello seria um “juiz de merda” por dar um voto pensando na repercussão na imprensa, não na correta interpretação da lei e na sua própria crença jurídica.

O juiz descrito pelo Richelieu de Sarney não combina com aquele que conversou comigo em 2013. O Celso de Mello da nossa entrevista era enfático ao defender uma magistratura afastada do clamor das ruas, justamente o oposto do que preconizava o então presidente do STF, Joaquim Barbosa, notório punitivista.

“Eu entendo que o juiz do STF deve ater-se ao caso, aos fundamentais do processo, e não pode se deixar contaminar pelo clamor das ruas, pelo clamor popular. O clamor social relacionado a determinado crime, por mais grave que ele seja, não pode justificar por si a decretação de uma prisão preventiva. Me parece que o clamor popular tem sim uma alta significação nas casas do Congresso nacional, pela própria natureza da função representativa que os congressistas exercem, mas permitir que o clamor popular contamine as decisões judiciais poderia representar uma injusta denegação de direitos e garantias fundamentais que assistem e compete a qualquer pessoa, a qualquer grupo ou instituição desta República democrática” – me disse Celso de Mello em 2013.

O caso narrado por Saulo Ramos não envolveu crime ou prisões, mas lei é lei e a interpretação dela não predispõe lustro na imagem do julgador junto à imprensa, portanto perante a opinião pública.

De todo modo, a história de Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal ser-lhe-á positiva no cômputo geral, principalmente se ele aplicar o Direito no seu voto derradeiro – a suspeição de Moro no caso Lula/Triplex.

Reconheça-se que o decano nunca se deu a afinidades político-partidárias no nível das de Gilmar Mendes, nem a um aberrante ativismo à moda de Luís Roberto Barroso. Dubiedade? Bem, essa é uma característica da qual nenhum ministro escapa.

O Celso de Mello que julgou Sérgio Moro suspeito em um processo no caso Banestado e que votou contra o cumprimento de pena após condenação em segunda instância é o mesmo que, em voto vencido, condenou José Genoíno por formação de quadrilha no Mensalão.

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